Quando uma família estrangeira se muda para Tete, para abrir um negócio ou trabalhar em algumas das empresas multinacionais, trazem para os habitantes da cidade novas possibilidades de emprego e esperanças de mudança. Em contrapartida, para as famílias estrangeiras, há o contato com o novo, o aprendizado sobre as diferenças culturais que ocorre, principalmente, no contato com os empregados da casa. É com eles e a partir deles que compreendemos o que é ser africano e podemos transformar realidades, mesmo que sejam de uma ou duas famílias.
Observo que estas mudanças ocorrem mais efetivamente em lares de famílias brasileiras. Talvez saibamos entender e aceitar melhor as diferenças e, como sabemos que estamos só de passagem, nos esmeramos para transformar a vida dos que estão perto de nós antes que irmos embora.
A história de Dona Fátima e sua patroa ilustram esta troca de experiências humanas. Nos cinco anos que estiveram juntas em Tete, a vida das duas mudou completamente. Dona Fátima aprendeu com sua patroa que não devia mais aturar o marido trazendo outras mulheres para dentro da própria casa, ela entrou com os papéis no governo e conseguiu um terreno para morar com os filhos. A patroa, que chegou casada, se separou. A pessoa que lhe estendeu a mão e cuidou dela nos piores momentos foi Dona Fátima.
Dona Fátima e patroa superaram as separações juntas, a patroa mudou para nova casa, Dona Fátima comprou os tijolos para construir a sua. Patroa arrumou novo emprego, Dona Fátima voltou a estudar. Patroa encontrou novo amor, Dona Fátima também. Patroa incentivava Dona Fátima e esta, além de terminar os estudos, tirou carteira de motorista de caminhão (com seus 1m50cm de altura). Por incentivo da patroa, Dona Fátima começou a ensinar os afazeres domésticos para as mulheres moçambicanas que, acostumadas a trabalhar nas machambas (lavouras), não tinham experiência em limpar, passar ou cozinhar. Dona Fátima se tornou uma professora dos afazeres domésticos e outras moçambicanas conseguiram emprego por causa da ajuda dela.
A patroa ajudou Dona Fátima a conscientizar-se e aprender a viver com o vírus da AIDS. Dona Fátima ensinou a patroa que mesmo no meio das adversidades um sorriso de orelha a orelha pode ‘salvar’ o dia de alguém. A patroa cuidou de Dona Fátima como se cuida de uma mãe. Dona Fátima cuidou da patroa como se cuida de uma filha. Ou seria vice e versa?
Quatro meses depois da volta definitiva da patroa para o Brasil, coube a mim ligar e contar a ela que Dona Fátima faleceu esta madrugada. De fato, depois que a patroa foi embora ela nunca mais conseguiu trabalhar. Na semana seguinte da ida da patroa, a saúde começou a piorar e dia após dia a AIDS vencia a batalha. Parece-me que ela esperava mesma a ida da patroa para se entregar ou talvez ela mesma tenha sido pega desprevenida pelo avanço da doença. Os cinco anos da amizade de Dona Fátima e a patroa renderam frutos; hoje os três filhos órfãos têm um teto para dormir, o que significa muito na realidade moçambicana. Para a patroa, restam as lembranças e os ensinamentos de superação de Dona Fátima apontando que não há outro caminho a seguir a não ser em frente.