quarta-feira, 31 de março de 2010

MINHAS AMIGAS DO ZIMBABWE

Desde quando cheguei aqui, há um ano atrás, fiz amizade com a mãe de uma das crianças da escola. Ela é uma mulher negra muito bonita, do zimbabwe, casada e com dois filhos lindos (uma menina de 10 e um menino de 2 anos). Tenho uma admiração especial pela sua filha, uma menina madura, inteligente, líder por natureza, que deixa os meninos, sempre mais imaturos, no 'chinelo'. O menino dela me adora, todo vez que me vê, ergue os braços, sai correndo e se joga pra cima de mim.
Aos poucos fomos ficando mais íntimas até que no final do ano passado ela me contou sua história com o marido. Ela o conheceu com 19 anos, casou-se e os maus tratos começaram. Depois da filha nascer, se separou, ficou na casa dos pais por 4 anos e, conforme ela mesmo disse, num momento de insanidade, se rendeu aos pedidos do ex-marido e aceitou a reconciliação.
Vieram para Moçambique e ela teve o segundo filho. Adivinha??? .... Os maus tratos recomeçaram.  Ela não podia ter amizades, a filha não podia ir ou voltar da escola com meninos dentro do carro, o dinheiro era contado (ele só entregava o suficiente para compras e queria ver os recibos), os passaportes foram trancados. A sorte era que o trabalho exigia que ele viajasse muito, o que era um alívio para todos.
Até então, eu tentava não me envolver. As diferenças culturais são muito grandes. Como eu poderia dizer a ela o que diria para uma amiga brasileira, sendo que todas as minhas amigas tem uma profissão, são independentes financeiramente do marido? Tinha medo de colocar idéias em sua cabeça que depois poderiam se voltar contra ela. Meu marido sugeriu que dissesse a ela pra envenenar a comida dele, pois com o sistema de saúde daqui, ninguém nunca saberia. Mas é claro que eu não disse isto a ela, apenas disse que estaria lá se ela precisasse de alguém pra conversar, de dinheiro, de abrigo, de ajuda com as crianças ... que ela poderia contar comigo. Disse que ela deveria ter em mente que seu marido tinha problemas psicológicos sérios e que ela não podia acreditar nas coisas que ele dizia a ela, não podia acreditar que não sobreviveria sem ele, que era uma perdedora. Disse também que ela deveria contactar sua família (mãe, dois irmãos solteiros) e começar a se planejar seu futuro com calma, porque nestas horas só nos resta a família, como sempre.
Sexta-feira passada, seu marido a espancou. Começou na mesa de jantar, com uma cadeira, ela tentou fugir pra fora e ele continuou espancando-a no jardim. Ela gritava por ajuda, os vizinhos vieram até o murro, mas não fizeram nada. Na segunda-feira a tarde, no meu turno para trazer as crianças da escola, reparei que a menina estava mais quieta que o costume e quando perguntei a ela como estavam as coisas, ela me contou tudo chorando e dizendo que ela tinha pedido pro pai parar, mas ele não ouvia.
Ontem, finalmente conversei com minha amiga. Ela tinha planos de ir ao Zimbabwe encontrar o irmão na fronteira e se juntar a sua família que agora se encontra na África do Sul. Disse que ligaria para o irmão de madrugada e resolveria tudo. Disse que a sua filha falava muito sobre mim em casa, o que deixava o marido irritado. Disse que, se algum dia, o marido perguntasse se eu sabia de alguma coisa, eu deveria negar; para minha própria segurança.
Há duas horas, eu acordei com a menina batendo aqui em casa. Veio devolver os livros que eu tinha emprestado a mãe. Disse que as malas já estavam no carro e que o pai levaria todos eles a fronteira do Zimbabwe para encontrarem o tio. Como é forte esta menina, ela fala com tanta firmeza, mas seus olhos não mentem ... eles transparecem a decepção de deixar os amigos, a escola, a casa e rumar para um destino indefinido. Ela sabe que é o melhor a fazer, ela sabe que não há outra saída, mas ela é apenas uma criança.
Dei dois terçinhos a ela, disse que era um pra ela e um pra mãe... para que se lembrassem sempre de mim e rezassem quando precisassem de alívio. Dei a menina os dólares que tinha em casa. Disse que escondesse na calça e só entregasse a mãe no Zimbabwe. Ela sorriu agradecida. Coloquei a menina na caminhonete e levei ela pra casa. Na garagem, vi o porta-mala do carro lotado de malas. Dei adeus a minha amiga, bom, na verdade, as minhas duas amigas: a mulher/adulta  e a mulher/criança. De fato, não vi diferença ao sentir o medo das duas diante do novo e do incerto.
Neste momento em que escrevo, peço a Deus por elas. Peço que este homem as levem com segurança, que não tenha nenhum surto no caminho. Peço a Deus que os irmãos prosperem e tenham condições de ajudá-las. Queria uma máquina do tempo para ver o futuro. Minha amiga mulher/adulta com um bom emprego e um homem que seja generoso com ela. Minha amiga mulher/criança crescida, advogada, juíza, engenheira. Mas principalmente queria ver que elas superaram estes acontecimentos, que elas amam alguém e que são amadas por este alguém. Queria ir pro futuro e ver que esta decisão que tomaram veio na hora certa, transformou suas vidas e que elas estão bem.

Um comentário:

  1. Oh, Samantha... I heard your story, but I've only now been able to read it. I have tears again thinking of them. Thanks for being there for them. God bless you! Beijihnos!

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