quinta-feira, 20 de maio de 2010

MÉDICOS SEM FRONTEIRA EM MOÇAMBIQUE - REVISTA VEJA / MARÇO 2010

VEJA Edição 2154 / 3 de março de 2010/ Medicina


Eles fazem diferença
Naiara Magalhães, de Maputo

Com criatividade, disposição para o trabalho e experiência no atendimento às doenças típicas das regiões pobres, os brasileiros ganham destaque na organização Médicos Sem Fronteiras e viram referência nas missões espalhadas pelo mundo

Com 20 milhões de habitantes, Moçambique, na costa oriental da África Subsaariana, é um dos mais preocupantes focos do vírus HIV em todo o mundo. Nos grandes centros, como a capital, Maputo, ou a cidade de Tete, a aids se faz presente em toda parte. Nas ruas, é raro cruzar com pessoas mais velhas. A expectativa de vida no país é de 47 anos para os homens e de 49 para as mulheres. Ao lado de outras doenças epidêmicas, os outdoors não deixam esquecer: "O que tiveste na tua última relação sexual: amor, sexo ou HIV?". Cartazes sobre cuidados com as crianças não reforçam apenas a importância da vacinação contra as afecções típicas da infância. Num deles, na legenda da fotografia de uma garotinha acompanhada pelos pais, lê-se: "Eu já vou fazer o teste do HIV". Um em cada sete adultos moçambicanos está contaminado – o equivalente a 15% dessa população. Em algumas regiões, como a de Maputo, o índice é de um em quatro habitantes. Para se ter uma ideia do tamanho da tragédia, no Brasil, a taxa de contaminação pelo HIV é de menos de 1%. Até pouco tempo atrás, muitos moçambicanos nunca haviam ouvido falar em aids. Para eles, seus parentes e amigos morriam vítimas de alguma feitiçaria. Ainda hoje é comum que os doentes recorram aos curandeiros na esperança de cura.

Em um país dilacerado pela miséria e por quase trinta anos de guerra encerrada apenas em 1992, a precariedade do acesso aos cuidados básicos de saúde e a falta de informação sobre prevenção e tratamento compõem o cenário ideal para a disseminação do HIV. Metade dos quase 100 000 mortos pela doença todos os anos tem entre 30 e 44 anos – está na plenitude produtiva. O país padece da falta de profissionais qualificados. O número de médicos em Moçambique não ultrapassa os 500. O de curandeiros, entretanto, supera os 70 000. Por isso, a ajuda estrangeira é crucial na luta contra a aids – tanto do ponto de vista financeiro quanto da mão de obra especializada.

A primeira e maior organização humanitária a desenvolver projetos de combate ao HIV em Moçambique foi a Médicos Sem Fronteiras (MSF), em 2001. Prêmio Nobel da Paz de 1999, a MSF foi fundada em 1971, por médicos e jornalistas franceses, e hoje conta com 27 000 profissionais, entre médicos, enfermeiros, psicólogos, arquitetos, administradores, economistas e engenheiros. Ela atua em 65 países conflagrados ou em situação de emergência sanitária (veja o mapa). Atualmente, a equipe da MSF em Moçambique é composta de 31 profissionais – sete dos quais brasileiros. Esses médicos e enfermeiras têm um perfil ideal para o trabalho desenvolvido pela instituição, porque ainda lidam por aqui com doenças típicas de países pobres, como tuberculose, malária e leishmaniose visceral. "No Brasil, muitos médicos não apenas estudaram tais moléstias como tiveram a experiência de tratá-las", diz Simone Rocha, diretora executiva da MSF-Brasil. Soma-se a isso o traquejo dos brasileiros para atender as populações mais carentes, de baixo nível educacional. "Eles sabem como transmitir uma mensagem de jeito simples para que o paciente consiga seguir o tratamento", diz o coordenador de um dos projetos da MSF em Moçambique, o enfermeiro inglês Christopher Peskett. Moçambique não é apenas o país com o maior número de brasileiros atuando na MSF, mas é também onde o Brasil faz escola.

Um dos projetos mais bem-sucedidos é o da médica paulista Raquel Yokoda, de 29 anos. O programa desenvolvido pela jovem vem ajudando a mudar um dos cenários mais cruéis da aids em Moçambique – o das crianças portadoras do HIV. Atualmente, 147 000 meninos e meninas de até 14 anos estão contaminados. As crianças entre zero e 4 anos mortas pela aids chegam a inacreditáveis 19% de todos os óbitos registrados pela doença. Com uma ideia extremamente simples, em seis meses Raquel conseguiu reduzir a taxa de mortalidade infantil em 80% no Hospital Dia de Moatize, nos arredores da cidade de Tete, no centro do país. Ela transformou a sala de espera num lugar acolhedor para as crianças – uma espécie de brinquedoteca, decorada com motivos infantis. Com isso, ir ao médico passou a ser uma diversão para meninos e meninas que vivem em estado de miséria. Ajudada por moradores locais, Raquel adaptou histórias e jogos infantis à cultura moçambicana para explicar às crianças que elas são portadoras de uma doença que requer cuidados para toda a vida. Como o idioma oficial, o português, é falado por apenas 40% da população, as cartilhas de Raquel tiveram de ser traduzidas para o dialeto nhungue, característico da região.

Numa das histórias para as crianças de 5 anos, a aids é simbolizada pela mudança da cor do pelo dos leões. Doente, uma leoa vai atrás dos conselhos de um velho hipopótamo. O tratamento prescrito: a água de um mar vermelho, as folhas verdes das árvores e os raios de sol, todos os dias, para sempre. Ela morre, mas recomenda a seu filhote, o simpático leãozinho Bekhi, que siga à risca as orientações do sábio hipopótamo. Ele obedece e consegue crescer forte e feliz. "Os pais têm muita dificuldade para contar a seus filhos que eles são portadores do HIV, e que terão de seguir um tratamento até o fim da vida", diz Alain Kassa, coordenador-geral da missão da MSF em Moçambique. "O projeto de Raquel mudou esse processo, aumentando a participação das crianças no tratamento." As cartilhas da jovem médica servem hoje de referência em todos os países de atuação da MSF. "Nós só conseguimos fazer um bom trabalho quando entendemos e usamos a cultura local para nos aproximar dos pacientes", explica Raquel. Ela voltou para o Brasil no fim de 2007, e agora cabe à historiadora goiana Wânia Correia, de 33 anos, dar continuidade ao projeto.

Uma das grandes inspirações para Raquel foi Laura Lichade, enfermeira moçambicana de 56 anos, com quem trabalhou ao longo de sua estada na África. Durante a guerra civil, enquanto fugia de um tiroteio, Laura pisou no estilhaço de uma mina. Por causa das complicações do ferimento, em 1994, teve o pé esquerdo amputado. Apesar de todas as adversidades, ela se dedica a cuidar de 56 bebês, crianças e adolescentes órfãos. Seis deles vivem na casa de Laura, com paredes de barro e chão de terra batida. Os demais, em um orfanato próximo. Laura fez com que todos fossem testados para o HIV e recebessem o tratamento adequado. Em Moçambique, 1 milhão de crianças não têm mãe. Delas, 400 000 ficaram órfãs por causa da aids. "Costumo dizer às crianças com HIV que os remédios são como as minhas muletas, que me mantêm de pé", conta ela. "Se elas acharem que podem parar o tratamento porque estão se sentindo bem, cairão, como eu caio sem as minhas muletas."

Cerca de 70% dos moçambicanos estão nas áreas rurais. Vivem da agricultura de subsistência nas machambas, como são chamadas as pequenas propriedades agrárias. Os centros de saúde e os hospitais ficam longe e a condução de ida e volta é cara – 200 meticais, o equivalente a 12 reais. Curandeiros, por sua vez, há por toda parte. Um dos rituais mais comuns no caso de doentes graves é a tatuagem. São feitos cortes de meio centímetro de comprimento nos braços e pernas dos pacientes, e uma mistura de raízes trituradas é aplicada sobre os ferimentos. As lâminas são reutilizadas e os potes de ervas compartilhados entre várias pessoas. Ou seja, a tatuagem é fonte de disseminação do HIV.

Somente quando se dão conta de que as ervas e os banhos dos curandeiros não funcionam, os moçambicanos recorrem aos médicos. Algumas pessoas chegam a caminhar 15 quilômetros até o hospital mais próximo, muitas vezes descalças, sob temperaturas impiedosas. Ao circular pela área rural de Tete, no início de uma tarde de verão, tem-se a sensação de que há alguma queimada por perto. Mas não há vegetação em incêndio, apenas o sol que arde sobre a terra batida. Até resolver ir ao hospital, o militar aposentado Kaneti Chavunda, de 67 anos, sofreu durante quase um ano com uma tosse persistente e uma lesão dolorida nos pés e nas pernas – quadro característico do sarcoma de Kaposi, o câncer mais comum entre os soropositivos. De sua casa ao Hospital Provincial de Tete, ele viajou duas horas na boleia de um caminhão. Em 25 minutos, Chavunda recebeu o diagnóstico positivo para o HIV. Não demonstrou angústia nem desespero. Olhar parado, em voz baixa, ele comentou: "Vou fazer o que os médicos mandam". Essa é uma reação comum. Como a maioria das pessoas da zona rural, ele parecia não ter a dimensão da gravidade da notícia que acabara de receber.

Os testes rápidos de HIV e as orientações sobre prevenção e tratamento são conduzidos pelos chamados conselheiros – moradores locais treinados pela equipe da MSF. Dessa forma, os poucos enfermeiros e médicos disponíveis podem se dedicar a atividades de maior exigência técnica. Uma das enfermeiras responsáveis pela formação dos conselheiros é a paulista Eliana Arantes, de 33 anos, há nove meses em Moçambique. Um de seus parceiros de trabalho mais experientes é o local Felisberto Dindas, de 36 anos. Ele lembra com precisão a data em que entrou para a MSF, a fim de trabalhar como segurança: 23 de outubro de 2001. Naquele dia, sua vida mudaria em vários aspectos. A princípio, representava a conquista de um bom emprego. Um ano depois, Dindas foi convidado a se tornar conselheiro. "Eu tenho facilidade para me comunicar e conheço muita gente", diz, com orgulho. Foi também graças ao trabalho na MSF que ele foi diagnosticado como soropositivo. Conselheiros com o perfil de Dindas são sempre bem-vindos. Só quem tem o vírus sabe como é receber a notícia do HIV. Só quem vive em Moçambique conhece as dificuldades de seguir o tratamento. Só quem consegue conviver com a infecção, sem cair doente, é capaz de passar a importância da prevenção e do tratamento.

A precariedade do sistema de saúde em Moçambique é aterradora. Acompanhar um dia de trabalho da enfermeira paranaense Janaína Carmello é recuar meio século na história da medicina. Aos 28 anos, ela é responsável pelo atendimento a grávidas no Centro de Saúde de Domué, na zona rural do distrito de Angónia, no noroeste do país. Sua principal missão é diminuir os riscos da transmissão vertical: a contaminação do bebê por sua mãe. Em suas consultas, não há aparelho de ultrassom ou sonar. A enfermeira tem de trabalhar com a fita métrica e o estetoscópio de Pinard. A fita serve para medir a barriga da mãe e calcular a idade gestacional do feto, já que a maioria das gestantes não tem ideia de quando engravidou. Em geral, elas só procuram assistência médica no sexto mês de gravidez. O estetoscópio, desenvolvido no início do século XIX, que Janaína só conhecia dos livros de história da medicina, é usado para medir os batimentos cardíacos do feto. Janaína encosta a boca do instrumento na barriga da gestante, aproxima o ouvido na outra ponta do estetoscópio e ouve o coraçãozinho na barriga da mãe. Enquanto nos países desenvolvidos uma mãe soropositiva é desaconselhada de amamentar seu bebê, de modo a reduzir o risco de infecção da criança, em Moçambique Janaína recomenda que o aleitamento materno seja feito até os 6 meses. "Aqui, as mães não têm condições mínimas de higiene para preparar o leite artificial, ainda que você o forneça. As crianças ficam com diarreia, perdem peso, adoecem e podem até morrer", diz ela. Ainda assim, quando as mulheres soropositivas seguem o tratamento à risca, a transmissão vertical do HIV é reduzida.

É dessa forma, com pequenas vitórias, que se trava o combate contra a aids em Moçambique. Desde a chegada da MSF, o número diário de novas contaminações caiu de 500 para 440. Pode parecer pouco, mas é uma grande conquista em se tratando de um país da África Subsaariana. E os brasileiros, como Raquel, Wânia, Eliana e Janaína, fazem a diferença em um universo tão esquálido.

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